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17 Mai 2024 | 12 minutos • Insights

Sobre as enchentes no Rio Grande do Sul

O que mudou na minha percepção

Ingrid Machado

Ingrid Machado

Engenheira de computação, especialista em engenharia de software. Autora deste querido blog.

Image de capa do post Sobre as enchentes no Rio Grande do Sul

Escrevo sobre as enchentes a partir de um lugar privilegiado. Digo isso porque, mesmo estando em Porto Alegre, eu não precisei sair de casa, moro próximo de uma Estação de Tratamento de Água (ETA) e tive acesso a recursos mesmo durante esse período de falta no supermercados.

Eu vivi uma dualidade. Olhando para um lado, via o alagamento, resgates e desespero e ouvia helicópteros e ambulâncias a todo momento. Olhando para o outro lado, a vida seguia normalmente, a tragédia nem parecia existir. Estar na divisa dessas duas situações me fez ver como existem diversas situações dentro de uma mesma condição.

O post de hoje é para compartilhar essa e outras conclusões que tirei sobre a tragédia que assolou o estado, de um ponto de vista muito pessoal. Não estou aqui como dona da verdade, a intenção é usar esse texto como forma de organizar os meus pensamentos e tentar tirar uma lógica no meio de todo esse caos.

O que mudou na minha percepção com essa enchente:

Entendi a importância dos serviços públicos

Os governos municipal e estadual atuais possuem uma grande preferência pela privatização. Por mais que sempre tenha considerado privatização uma má ideia, pude ver em primeira mão o quanto isso é uma péssima ideia.

Um exemplo muito claro foi o desligamento da casa de bombas do bairro Menino Deus. A CEEE Equatorial (privatizada) desligou a energia da casa de bombas e somente depois disso informou a prefeitura. Após ser informada, a prefeitura notificou a população da necessidade de se evacuar os bairros Menino Deus e Cidade Baixa. Apoiei um casal de amigos nessa evacuação e pude ver o desespero das pessoas saindo de casa. Caso não tenha ficado claro: desligar a casa de bombas significava inundar dois bairros que não estavam sendo considerados de risco, ou seja, cheios de moradores ainda em casa.

Em contrapartida, o DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos), que é público, segue trabalhando sem parar nas ETAs, EBABs e EBAPs. A todo momento o perfil do DMAE nas redes sociais informou o estado de cada estação, o avanço nos reparos e os impactos no mapa de sistema de abastecimento. No momento que estamos vivendo, ter informações sobre o andamento dos reparos e desligamentos é muito importante.

São duas atuações que deixam bem claras o quanto um serviço público se diferencia de um privado no amparo à população no momento de crise. E demonstra como o governo está lidando com cada nova crise que surge dentro da crise.

Basta acessar o Twitter de cada empresa e perceber o volume de informações passadas por cada uma. É incomparável a transparência da comunicação do DMAE com a falta de detalhes da comunicação da CEEE Equatorial.

Para ficar mais claro, segue o significado de cada sigla:

Entendi melhor a rede fluvial do estado

Mesmo morando bem próximo ao Guaíba e à Avenida Ipiranga, nunca parei para prestar atenção em como esses sistemas se conectam. Talvez o motivo tenha a ver com o fato de que nasci em uma cidade litorânea (Rio Grande) e ser cercada de água para mim é normal. O que não é normal é ver esse volume de água invadir a cidade com tanta força tão frequentemente.

Essa tragédia me fez pesquisar e entender melhor a rede fluvial de Porto Alegre e a conexão dele com Rio Grande. Infelizmente, o caminho da água passa da capital para o sul do estado, duas regiões que tenho uma grande ligação. Quando a situação melhora aqui na capital, significa que pode estar piorando na zona sul.

Além de entender como essa rede é gerida pelo DMAE em Porto Alegre, saber como os outros rios do estado deságuam no Guaíba e chegam até a laguna dos Patos é uma forma de entender melhor as notícias e notificações enviadas pelos órgãos oficiais.

Percebi o tamanho do privilégio que é ter acesso a supermercados abastecidos

Já tinha tido essa percepção durante a pandemia, principalmente no início da quarentena. Mas, com o desabastecimento de Porto Alegre, vi o quanto temos uma cidade desigual. Acho que o único item desabastecido em toda cidade era água mineral. Porém, fui a diferentes supermercados e vi um com prateleiras vazias, outro faltando apenas hortifruti e outro faltando apenas água. Até o tamanho das filas era muito diferente.

O ponto principal aqui é a falta de atenção que temos quando vamos ao supermercado. No meu caso, não costumo prestar atenção no caminho necessário para que um item esteja ali na prateleira ao alcance da minha mão. O bloqueio nas estradas mostrou que alguns itens viajam e muito para chegar aqui e qualquer bloqueio pode significar faltas no estoque.

Senti o quanto a irresponsabilidade dos gestores públicos afeta a todos

Não interessa onde tu mora, quanto dinheiro tu ganha, quais condições tu tem. A falta de manutenção do sistema de prevenção de enchentes é uma decisão dos gestores públicos que afeta todo mundo. Basta ver um vídeo de como a água inundou a Avenida Mauá e ler reportagens sobre as análises iniciais que fica bem claro o quanto a falta de manutenção teve um grande impacto no que aconteceu.

Durante o governo Bolsonaro, passei a prestar mais atenção na política e agora, com as enchentes, passei a prestar mais atenção no meu entorno. E isso inclui acompanhar os desdobramentos da tragédia dentro da política, pensando nas ações de reconstrução e ações de prevenção. Sei que muitas pessoas são alheias à política ou se cansam porque existe muito ruído nesse tipo de assunto. Mas é possível acompanhar o que acontece fora dos grupos de WhatsApp e de discussões vazias.

Os políticos se aproveitam da nossa falta de interesse e da nossa memória curta. Podemos aproveitar que está tudo sendo documentado na internet para reacender esse interesse durante tempos tranquilos e não esquecer dos responsáveis pelo que aconteceu no estado. Só diz que não é hora de apontar culpados quem tem a culpa direta ou interesse no que pode lucrar com a tragédia.

Entendi que muito ajuda quem não atrapalha

Já comentei que apoiei na evacuação da Cidade Baixa, mas gostaria de reforçar que foi um apoio muito pontual e que me mostrou que não tenho condições de estar na linha de frente nos resgates. Já evoluí muito no controle das minhas emoções, mas não tenho o necessário para lidar com situações mais extremas.

Ciente disso, mantive a minha ajuda de longe, compartilhando iniciativas de apoio e fazendo pix para quem estava na linha de frente, principalmente para quem estava fazendo marmitas. Dessa forma, sinto que não fiz nada que pudesse colocar quem precisa de ajuda em risco e nem fui além dos meus limites para ajudar.

Conversando com pessoas que estavam na linha de frente e vendo alguns depoimentos, entendi que realmente o melhor é ajudar de longe se não conseguimos lidar com a situação.

Consegui ver o papel social das redes sociais

Por mais que estivesse vivendo um momento em que gostaria de me afastar das redes sociais, tive que mudar esse ponto na minha rotina durante as enchentes. Foi no Twitter e no Instagram que consegui acompanhar o avanço da água em Porto Alegre e Rio Grande e saber como doar para as iniciativas que estavam surgindo.

A nossa rotina de casa incluía passar o dia ouvindo a rádio Gaúcha, que estava com a programação toda dedicada para a cobertura das enchentes, e acompanhar os perfis das prefeituras, governo estadual, governo federal e serviços públicos. Também consumimos muitas informações das universidades federais, principalmente da FURG e da UFRGS. Sempre soube do trabalho importante que acontece dentro das universidades, mas foi bom relembrar o quanto elas podem contribuir para a sociedade em momentos como esse.

Por mais que as redes sociais estivessem tomadas com fake news e discussões desnecessárias, também havia muita informação importante que nos permitiu seguir em casa sabendo que estávamos em segurança.

Descobri negacionistas onde menos esperava

Esse é um ponto complicado e talvez falar negacionista seja uma palavra pesada demais. Mas eu nunca imaginei que teria gente próxima a mim falando que as notícias estavam exagerando para apavorar a população.

O volume de fake news foi tão grande, que consigo entender porque até pessoas que sempre considerei lúcidas estavam se convencendo de que a situação não era a reportada nos jornais. Quando somos confrontados por situações inimagináveis, imagino que seja o melhor momento de tentar nos convencer de qualquer coisa. Infelizmente, muita gente caiu na narrativa de que não era tanta água invadindo as cidades, que não teve ajuda do governo ou que estavam escondendo o número de mortos.

Era só ligar a TV ou o rádio para entender a situação, mas o WhatsApp e os boatos se tornaram mais confiáveis para muitas pessoas.

Entendi que quem cria fake news não tem o mínimo de humanidade

Se prestar a criar fake news no meio de uma tragédia, dificultando a distribuição de ajuda para pessoas atingidas não tem explicação. O que eu gostaria de falar aqui sobre isso não cabe no formato de blog que gostaria de manter, então vou tentar usar palavras que descrevam um pouco o meu sentimento, sem exageros.

Se você que está lendo isso criou fake news a respeito dos resgates, dos abrigos e da assistência que foi dada para tumultuar mais ainda a população, dificultar a chegada de ajuda ou conseguir benefícios para si próprio: parabéns, você pode se incluir na escória da humanidade. Não tem justificativa, seja política ou não, que me convença que você merece viver em sociedade. Eu espero que qualquer vantagem que você pretendia tirar dessa situação não venha e que a sua vida apenas retroceda daqui em diante.

Também espero que o poder público aja a respeito desses absurdos que tivemos que ler durante as enchentes. Que todos que criaram fake news e tentaram usar uma tragédia como palanque sejam punidos diante da lei e que sirvam de exemplo para que quem mais quiser se aproveitar de tragédias pense muito bem antes de disparar qualquer fake news.

Percebi o volume do nosso consumo de água

São muitas coisas que desperdiçamos no nosso dia a dia e não percebemos. Com as enchentes, o principal gasto que me tornei mais ciente foi o de água. Não ficamos totalmente sem água porque as caixas d’água deram conta e racionamos bastante, mas apenas racionar já nos dá uma dimensão do quanto usamos e do quanto dependemos da água.

É bem desconfortável racionar água nesse nível, principalmente no uso do banheiro. Mas era extremamente necessário, principalmente porque, a cada ETA religada, quem mora mais longe demora mais a receber água. Vimos vários avisos do DMAE sinalizando que o consumo estava muito alto e seguimos racionando mesmo depois de ter o fornecimento normalizado no prédio.

Como já mencionei, Porto Alegre está dividida e uma parte parece alheia da tragédia. Saber que algumas pessoas estavam lavando carro e calçada num momento de racionamento me parece tão cruel quanto os criadores de fake news.

Vi o quanto temos boas pessoas entre a gente

Mesmo com tantas menções negativas, gostaria de terminar esse texto falando da corrente de solidariedade que se formou no estado. Ficou comprovado que temos muitas pessoas boas, preocupadas com o próximo e que fazem o bem sem olhar a quem. Teríamos uma tragédia com proporções muito maiores se não fosse pela atuação da sociedade civil.

Foi uma tragédia com proporções tão grandes que apenas o estado não teria condições de atender todas as demandas. Mesmo com muito dinheiro sendo direcionado para o Rio Grande do Sul, muitas iniciativas foram coordenadas pela população e muitas pessoas foram salvas por esse grupo que decidiu ajudar desde o primeiro dia.

É um alívio ver o quanto somos fortes mesmo em meio às tragédias. Para os bons, fica o meu desejo de que recebam o triplo do que cederam durante esse momento.


Caso você seja de fora do estado, segue uma lista de fontes que podem te ajudar a entender o tamanho do estrago:

Nessa entrevista feita na Rádio Gaúcha no dia 12/05, a partir de 03:57:24 no vídeo, é feito o comentário a respeito dos custos de reconstrução. Resumindo a explicação, não teríamos um custo de reconstrução no nível do que foi gasto para reconstruir Nova Orleans após o Katrina porque temos as universidades federais.

No dia seguinte, saiu a notícia informando que o prefeito de Porto Alegre fechou uma parceria com uma empresa americana para reconstrução.


Não vou me estender mais e acho que ficou clara a minha visão de tudo o que aconteceu. É até difícil explicar tudo o que vi acontecer aqui e acho que nem cabe descrever algumas situações mais inacreditáveis.

Mas a mensagem final que gostaria de deixar é que você se informe. Busque dados sobre o local que você mora, tenha consciência de que nem tudo o que se lê é verdade. Duvide até mesmo do que eu estou escrevendo aqui e vá atrás de confirmação do que consome em qualquer fonte.

Fique seguro e siga atento. A natureza nos tornou mais humildes e só nos resta aprender a lição para encarar o futuro.

O link do post foi copiado com sucesso!

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